“Acaso ela não o fizera ver, tantas vezes, o abismo que os separava e que nada poderia preencher?
Desposara-o movida pelo medo de ficar sozinha, de não ter quem cuidasse dela em caso de necessidade. E porque sempre é bom ter um homem em casa, nem que seja para trazer a lenha para cima e levar o lixo para fora.
Talvez — quem sabe? — a viúva que envelhecia se tivesse deixado comover ao contacto do macho que vinha quase todas as tardes tomar chá com ela.
Mas falhara. Ela ficara hirta desde o primeiro contacto físico, e as camas separadas eram um símbolo da união malograda.
Em suma, ele não passava de um intruso. No fundo dela mesma, Marguerite devia acusá-lo de se ter introduzido em sua casa pela astúcia.
Como se ela não o tivesse chamado!”
Trecho do livro O Gato de Georges Simenon – E. Nova Fronteira
Em “O Gato” Georges Simenon leva ao extremo a relação absurda de disputa, alfinetadas, distanciamento e co-dependência, que ocorre na maioria dos casais de forma menos extremada.
No trecho acima é exemplificado o pensamento do personagem, repleto de justificativas racionais e mesmo convincentes! É dessa forma que acontece na realidade – há explicações lógicas que justificam o distanciamento! Precisamos, por isso, ter consciência que a relação de casal não se fundamenta em aspectos lógicos; é uma relação afetiva – amorosa.
Quando é imperiosa a afirmação do “ego” e se busca apoio no raciocínio lógico, temos a indicação de que está ocorrendo uma disfunção que compromete a relação de afeto. Gradualmente a relação passa a ocorrer no âmbito racional, indo ocupando mais e mais o espaço antes ocupado pelo âmbito emocional.
É assim que se dá com o casal e é assim que assistimos ocorrer, lentamente, na relação entre pais (pai e/ou mãe) e seus filhos, na medida em que estes vão ganhando maior habilidade racional. Na medida que a criança se torna mais capaz de raciocinar, muitos pais transferem (cedo demais) o contato emoção-emoção, e dessa forma abdicam de seu papel de “guia” na formação do filho.
Pela similaridade dos processos, é freqüente que a deterioração da relação afetiva do casal ocorra quase que em conjunto com a deterioração da relação com os filhos.
Comentário
Nenhum comentário.