Na terapia de casal, sempre que falo nos jogos que acontecem em uma relação, freqüentemente sou contestado: – “Eu não faço isso; só se for “muuuuuito” inconsciente!”. O problema, acredito, seja pelo termo que usamos: “jogo”. Um jogo pressupõe regras, estratégias e isso implica em estar muito consciente das ações, já que o objetivo é vencer. Não é desse jogo que falamos na terapia de casais. Os jogos que acontecem na grande maioria dos relacionamentos são sim absolutamente inconscientes.
Eles surgem e se mantém suportados por interesses conscientes legítimos, inclusive visando o “bem” do outro e/ou o bem do relacionamento. Dessa forma as ações e atitudes são justificadas e justificáveis além de “meritórias” na maioria das vezes. O resultado geral, no entanto, é um jogo no qual ambos saem perdendo.
Em função de estarem fundamentados em nossas crenças, valores, princípios – no nosso “modo de ser”, os jogos acontecem em praticamente todas as nossas relações. Nas relações mais distantes e/ou formais, os jogos são mais conscientes; nas amizades mais íntimas os jogos conscientes se reduzem e continuam acontecendo os inconscientes que tendem a provocar menos estragos, pois é freqüente que haja a consciência de que o outro é “outro” e com isso tendemos a estar mais conscientes da necessidade de mantermos o “respeito” à individualidade.
Uma pausa nos “jogos” para uniformizarmos um pouco nosso entendimento sobre o “respeito”. Relacionamentos íntimos implicam na união emocional pela identidade de valores e/ou complementariedade de características/habilidades (gostam das mesmas coisas e/ou um fala nos momentos em que o outro é mais reservado). Quanto maior é a intimidade, mais fácil é a diluição da noção de respeito ao “outro” pois o sentido de “outro” está já diluído (o “outro” é quase parte de nós mesmos).
Isso é mais fácil de ser observado nas relações entre pais e filhos (mães, para ser mais específico). Lembro-me de um episódio ocorrido quando eu tinha 6 ou 7 anos de idade: dei uma pastilha de goma de mascar a uma criança de uns 4 anos. Esse “chiclete” tinha aquela cobertura rígida de açúcar e a criança o deu à mãe para que o mastigasse – assim que a cobertura de açúcar foi desfeita, a mãe tirou o “chiclete” da boca e o colocou na boca da filha. Meu sentimento: nojo! A menina não gostava da cobertura açucarada e a mãe a desfazia. Não há nojo nessa relação pela intensa união que existe entre a mãe e seus filhos; da mesma forma o respeito à identidade do outro é muito tênue e quase inexistente. Mais tarde a rebeldia adolescente na busca da própria identidade tem também a função de provocar algum distanciamento entre pais e filhos e abrir um maior espaço ao “respeito” à identidade do outro (do filho que passará a ser “distinto” dos pais).
Você respeita quem o respeita? Na nossa cultura aprendemos a respeitar com maior facilidade quem nos desrespeita ou melhor – quem invade nossa privacidade sem que possamos fazer o mesmo. Foi assim até há poucas décadas nas relações de trabalho: o “chefe” era respeitado porque tinha o poder de nos desrespeitar. Um “chefe” que respeitava a individualidade de seus “comandados” perdia a “autoridade” (e possivelmente seu cargo de comando). Ultrapassar os limites da individualidade foi então uma forma de exercer o “comando”. Nas relações de afeto acontece algo parecido: ultrapassamos os limites da individualidade muitas vezes porque queremos o melhor para o outro e o “melhor”, é claro, é aquilo em que acreditamos – é a “nossa” visão de mundo – o melhor é o que vemos e como vemos e não o que o “outro” pensa, vê, acredita! É muito fácil, por isso, desrespeitarmos – ultrapassarmos o limite da individualidade do “outro” – quando nos unimos a ele.
A redoma pode ser vista como proteção e também, na sua outra face, como limite. Ela dificulta a expansão – o desenvolvimento.
Você respeita quem te ama?
Voltemos aos jogos:
Os pais, com a melhor das intenções e com o objetivo de que o filho adolescente “cresça”, desenvolva sua identidade e se torne “responsável”, podem promover um afastamento emocional (vínculo que ele ainda precisa), porém manter o controle e tomar decisões por ele. Um “jogo” então pode ser criado no qual os pais permitem que o adolescente faça escolhas, essas escolhas feitas por ele “testam” a suposta liberdade que estaria ocorrendo (vínculo emocional) e diante dessa escolha-teste, os pais exercem seu poder de veto para “proteger” o filho, gerando conflitos freqüentes e intermináveis.
O mesmo se dá nas relações afetivo-sexuais duradouras: posso querer que o “outro” seja independente mas o supro, o protejo de forma a impedir que ele vá em busca da independência; enquanto isso o “outro” se mostra agradecido e prestigiado por essa “proteção” reforçando-a. Externamente se vê então o comando e a dependência, assim como, em alguns momentos, a tirania que se altera com a crítica à dependência. Nesse quadro, entre os diversos resultados possíveis, podemos ver dois que se destacam:
- Um que se sacrifica (e comanda) e o outro que usufrui (e segue).
- Um que critica e cobra mais ação e o outro que se queixa da dominação (e cobra mais “espaço”).
Ambos, apesar do que é explicitado conscientemente, continuam a jogar esse jogo inconscientemente.
Dirigir o automóvel pode ser uma boa metáfora que identifica eventuais jogos que possam estar ocorrendo. Quem dirige o carro está “no comando” então:
– só um dos cônjuges dirige?
– só um dos cônjuges dirige quando ambos estão no carro?
– há um revezamento apenas em situações especiais?
– o revezamento praticamente nunca acontece?
E no restante da vida a dois há queixas ou críticas nessa questão “dependência/independência”?
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